sexta-feira, 11 de maio de 2012

MONETARIZAÇÃO DO AFETO

               Li a expressão ‘monetarização do afeto’ pela primeira vez no livro de direito das famílias de Maria Berenice Dias, quando a autora tratava da repercussão jurídica do namoro e da infeliz possibilidade de celebração de um contrato de namoro. A expressão é absolutamente pertinente. Estamos mesmo monetarizando o afeto. O que se lamenta é que isso agora foi chancelado por um tribunal superior.
                O Superior Tribunal de Justiça julgou há pouco o Recurso Especial n. 1.159.242/SP. O objeto da ação era a reparação por danos morais em virtude de abandono paterno-filial. O Réu possuiu um relacionamento com a mãe da autora vindo esta a nascer, não sendo, no entanto, por ele reconhecida. Tal reconhecimento só veio após demanda judicial. Desde então, o pai vem cumprindo com a obrigação alimentar imposta. Mesmo assim, o STJ condenou o pai ao pagamento, a título de danos morais, do valor de R$200.000,00 (duzentos mil reais) à filha pelo fato de sua “omissão da prática de fração de deveres inerentes à paternidade.”
                Depois de verdadeira ginástica jurídica e argumentativa, concluiu a ministra que “amar é faculdade, cuidar é dever.” E que o descumprimento desse dever, de matiz constitucional, redundaria na possibilidade de reparação pecuniária pelos danos causados. Para ela, é necessária a presença paterna na “formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica e seja capaz de conviver em sociedade...”
                Algumas considerações merecem ser feitas e desde já se adianta a insurgência e a discordância com a decisão proferida. O próprio STJ, ao se manifestar em processo análogo em 2005, se posicionou contrário à reparação moral em questões afetivas, notadamente na ausência de convivência entre pai e filho (REsp 757.411/MG).
                O caso ganhou proporções midiáticas, sendo inclusive objeto de matéria no fantástico, programa de esmagadora audiência e nem sempre marcado pela imparcialidade que o direito exige na análise de questões, sobretudo intrincadas como a presente.
                A Autora aparece no vídeo, se mostrando uma pessoa absolutamente normal, de trinta e oito anos, casada, bem desenvolvida, com a fala segura e vocabulário bem utilizado. Vendo sua desenvoltura, em momento algum se deduz tratar-se de alguém tão prejudicada e mal desenvolvida emocionalmente pela não convivência com o pai. E para confirmar isso, vale transcrever um trecho das suas declarações sobre o ajuizamento da ação: “ajuizei para que ele saiba que ninguém deve abandonar ninguém.” É claro, portanto, o caráter vingativo da demanda. Saliente-se ainda a sua já avançada idade. A decisão, a todo momento, parece se referir a uma criança ou a uma adolescente e não a uma adulta de 38 anos.
                Nesse primeiro ponto é necessário se averiguar até que ponto a Autora pretende efetivamente o restabelecimento de uma saudável relação com seu pai ou se simplesmente, em virtude do abastamento financeiro deste, se ver indenizada pecuniariamente, engrossando as fileiras da deletéria ‘indústria do dano moral’. Pela declaração da filha, salta aos olhos a sanha monetarista. Confirmada, lamentavelmente, pelo Superior Tribunal de Justiça.
                Aduz ainda a ministra, conforme reproduzido acima que a não presença do pai fez com que a autora não se desenvolvesse plenamente. Ora, agindo assim, criamos uma enorme diferenciação entre pessoas, considerando como plenamente desenvolvidas, apenas aquelas que foram efetivamente criadas por ambos os pais. Pela premissa, famílias monoparentais, portanto, produzem em seus filhos um desenvolvimento limitado ou falho. Quem não teve pai ou mãe, por morte, distância geográfica, sumiço, longo tempo na prisão etc nunca terá o mesmo desenvolvimento de quem teve os pais biológicos ao lado. Não parece pertinente. A própria psicanálise, citada na decisão, considera substituível a chamada ‘função paterna’. O direito também, ao consagrar a paternidade socio-afetiva. Não é só o pai biológico capaz de criar, amar, ou como se extrai da decisão como dever, cuidar de um filho. Ressalte-se que a ministra destacou que o pai descumpriu uma fração de seus deveres. Será que essa fração foi tão determinante e capaz de gerar indenização tão vultosa?
                Criar e cuidar de um filho que não se desejou, que não ama, seria realmente positivo e produtivo no desenvolvimento da criança? Quem sabe a omissão em casos assim, deixando tão importante mister apenas à mãe, não traga um resultado melhor, já que para esta não faltarão o amor, carinho e cuidado necessários. Não se está aqui defendendo o abandono. O que se quer demonstrar é que nem sempre, a presença de alguém que efetivamente não queria estar ali, será algo vantajoso. Ser obrigado a cuidar, sob pena de ter de desembolsar altas quantias por isso, não parece interessante nem inteligente, nem mesmo justo.
                Outro prisma que merece reflexão, ainda na temática da monetarização é o gigantesco leque de possibilidades de futuras demandas que pode se abrir quando se admite a indenização em questões altamente subjetivas como as afetivas.
                Teremos em breve a propositura de demandas de natureza parecida, como o outro lado da mesma moeda, por exemplo. Será acolhida pelo STJ a demanda reparatória de um pai que foi abandonado por sua filha? Irmãos que brigaram e deixaram de se falar? Amigos de longa data que romperam relações? Namorados que terminaram o namoro? Poderá se demandar reparação moral em face da presidenta pelo não desenvolvimento satisfatório em virtude da situação do país? Poderá se requerer indenização da péssima televisão brasileira, considerada uma das vilãs na má formação educacional e cultural do país? Se ajuizará moralmente contra as falidas escolas públicas, pelo fraco desenvolvimento intelectual de seus alunos? Todas elas envolvem falta de cuidado. Porém, salta aos olhos a impropriedade da reparação pecuniária a título de danos morais em casos dessa natureza. Assim como no que se discute neste pequeno artigo.
                Por derradeiro, insta lembrar que o abandono já possui sanção em nosso ordenamento, qual seja a perda do poder familiar (art. 1638, II do Código Civil). Mesmo que se argumente ser este um prêmio ao genitor que não deseja conviver com a prole, tem-se também já consagrado em nossa doutrina e jurisprudência o chamado ‘dever de visita’ cujo titular do direito é o filho, ao contrário do vetusto ‘direito de visita’ titularizado pelo pai. Ocorre que, faz jus a exigir a referida convivência o filho ainda criança ou adolescente, muito longe da avançada idade da Autora do caso em apreço.
                Diante de tudo isso, parece equivocada a decisão do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Monetarizar o afeto é perigoso e seus reflexos são imprevisíveis. Não será dessa forma que se restabelecerão ou se fundarão relações saudáveis entre pais e filhos. Leis e sentenças não fazem as pessoas se amarem e o cuidado é corolário do afeto e do amor.

3 comentários:

  1. Querido Bernardo
    Parabéns por abrir um espaço onde poderá publicar suas percepções, sempre tão pertinentes e atuais. Vai bombar!
    Tenho pequenas cnsiderações:
    A atual concepção da ordem jurídica nos leva a abandonar antigos conceitos retrógrados e patriarcais. As revoluções sociais nos levam a tão sonhada igualdade, dignidade da pessoa humana e responsabilidade.
    No caso, não se trata de uma simples relação amorosa desfeita que gerou sofrimentos, nem tão pouco da ignorância, mas da certeza de saber e não se ater à responsabilidade inerente a um ato ou fato. O simples abandono não se configura aqui, não se configura o desconhecido ou o falecido.
    O dano moral, relativo às questões afetivas, deixou de ser avaliado simplesmente para satisfazer a parte lesada, por simples vingança ou que teve um sofrimento profundo, mas sim aquele que teve um de seus direitos personalíssimos violado, sua dignidade, provado, no caso, ainda, que havia discriminação entre outros filhos, gerando o direito a uma compensação.
    Nem sempre o que parece é!

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  2. Não sei, não sei. Juro que não sei!
    Há pouco eu estudava sobre Responsabilidade Civil e me deparei com essa frase de José de Aguiar Dias constante no seu livro "Da Responsabilidade Civil": "Toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilidade".
    Por sua vez, quando se fala em dever de reparar um dano, pressupõe-se a existência desse dano que, entendo eu (e principalmente nesse caso concreto), não pode vir de uma abstração ou de uma potencialidade.
    Ora, não haveria garantias de que sob outras condições essa mulher que se mostrou bem preparada estaria mais bem preparada. Talvez, sob os confortos de uma vida diferente ela se acomodasse e fosse metade do que veio a ser. Não se sabe e nem se tem como saber.
    Não consigo deixar de acreditar que a Ministra fez um exercício (perigoso) de adivinhação com a sua decisão. Consegue o imediatismo midiático, traz à tona um tema que causa comoção e chama a atenção mas, permitindo-se correr o risco de fazer mal ao direito como um todo.
    Somos produtos do meio que nos soma e não o resultado de uma subtração daquilo que deixamos de ter. No jogo da vida, o "se" não joga e, exercício de futuro, sonhos acordados, não são perspectiva de direito pra ninguém.
    Por outro lado, onde acreditamos ter havido uma formação ideal, podem estar sublimados diferentes problemas e angústias resultados desse "abandono" de quem se questionava - ainda que não diretamente - por que os outros irmãos tinham o que ela nunca teve?
    Enfim, continuo sem saber... mas me parece que o direito é para fazer justiça e nunca para legitimar vingança.

    Abraço e sucesso com o blog!

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  3. Muito bom! Gostei do texto e concordo com vc!

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