Que muitos juízes brasileiros já
perderam a noção de seus limites como julgadores já é assunto até batido. Mas
nem mesmo com o desgaste no meio jurídico, a prática vem diminuindo. Bem ao
contrário, aliás. Vivemos a era mais recrudescida de relativismos e
decisionismos, mesmo com o pós-positivismo e a hermenêutica filosófica pulando
na frente dos juristas. Cada vez mais se julga conforme os gostos do julgador.
E fica tudo por isso mesmo.
Vale
lembrar Lênio Streck quando afirma que “a “vontade” e o “conhecimento” do
intérprete não constituem salvo-conduto para a atribuição arbitrária de
sentidos e tampouco para uma atribuição de sentidos arbitrária (que é
consequência inexorável da discricionariedade).” (in Verdade e Consenso. 5. ed. Saraiva: 2014, p.
43).
A
malfadada decisão da vez é a de um juiz do Rio de Janeiro que proibiu a venda
da autobiografia escrita por Adolf Hitler – Mein
Kanpf (Minha Luta). Nela estariam estampadas as inspirações do nazismo bem
como poderia, segundo alguns (e o próprio juiz em tela) funcionar como
estimulante da prática de crimes contra os direitos humanos.
O
magistrado afirma em sua “fundamentação” o batido discurso de que a dignidade
humana é fundamento da república e que os direitos humanos devem prevalecer
sobre o terrorismo, consignando “que é fato notório que o líder nazista
incitava a prática do ódio” e ainda tenta mascarar se colocando como
pós-positivista e garantindo que a obra teria o condão de fomentar as práticas
nazistas.
A
leitura desavisada ou incauta da decisão pode levar o leitor mediano a imaginar
que a venda do livro (no Brasil) ensejaria uma nova guerra mundial. Cabe, de
antemão perguntar: será que o digno magistrado leu o livro? Ou apenas se deixou
levar por alguma versão da obra? Sua previdência e devida atuação diligente e
expedita como membro do judiciário em evitar a disseminação do ódio no país
chega a emocionar... Será que em sua próxima decisão o meritíssimo irá proibir
a venda de armas no país?
Ele
simula afastar uma insustentável ponderação ou um conflito de direitos
fundamentais, mas atinge o mesmo resultado ao “escolher” a dignidade como
fundamento necessário em detrimento de qualquer outro. Ponderou, enfim.
Lembrar
para não esquecer é uma frase de extrema importância histórica, sobretudo
quanto a fatos gravíssimos como foi o nazismo. Temos sempre de lembrá-lo justamente
para que ele não se repita. Se pudermos compreendê-lo, melhor ainda. E a
leitura da obra de Hitler pode ser fundamental nesses pontos. O imbecil que
propaga o ódio não lê nem gibi, quanto mais uma densa e robusta publicação como
Mein Kampf. Ademais, é de facilidade
infantil se baixar o livro pela internet. Ou será que nosso douto cavaleiro
judicial irá proibi-la também?
Ainda
lembrando, convém esclarecer que foi justamente em decorrência das atrocidades
cometidas pelo nazismo que a dignidade humana passou a figurar como fundamento
de diversas Constituições. O (re)conhecimento do absurdo do que ocorreu
germinou a potencialidade da dignidade humana. Ali se passou de todos os
limites. Ali a humanidade viu a possibilidade de se ver desumanizada. E quanto
a isso, por evidente, não cabe retrocesso.
Fica
claro da decisão em comento que o julgador se valeu de suas impressões pessoais
sobre os fatos, atuando de forma solipsista, vislumbrando, conforme seus
interesses, uma “solução” para o perigo de se publicar um livro de grandeza
histórica, mas de conteúdo indesejável.
Maria Celina Bodin
de Moraes ressalta que “a aceitação racional das decisões judiciais deve ser
guiada pela qualidade dos argumentos levantados e que a chamada
‘constitucionalização’ não pode funcionar como um pretexto a conferir ao
magistrado carta branca para decidir conforme suas convicções pessoais” (in Na
Medida da Pessoa Humana. Renovar, 2010, p. 16). Ronald Dworkin é categórico
ao afirmar que “cada um pode ter a sua própria opinião, e a opinião do juiz não
oferece mais garantias de verdade do que a de qualquer outra pessoa”. (in Levando
os Direitos a Sério. Martins Fontes, 2007, p. 431)
Não
estou aqui, evidentemente, defendendo Hitler nem qualquer prática de ódio. Mas
me parece bastante claro que a proibição da publicação, sobretudo sem uma
fundamentação mais adequada, é inócua e, mais ainda, indevida. Ademais, já
enfrentamos hoje no Brasil uma inédita onda de ódio, fomentada por diversos
setores. E, lamentavelmente, ela deve permanecer ainda por tempo indeterminado,
publicando-se ou não publicando-se o livro de Hitler.
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