Tem causado bastante discussão a
questão referente à divulgação de fatos da vida de pessoas famosas em
biografias “não autorizadas”. De um lado biógrafos e editoras defendendo a
liberdade de expressão, consagrada constitucionalmente, e, de outro, os
biografados, incomodados com certas revelações ou abusos, amparados em nosso
código civil que proíbe a publicação sobre a vida de alguém sem sua autorização
a bem da intimidade e privacidade, valores também fundamentais.
Costumo
dizer, me referindo às celebridades (ou subcelebridades, categoria nova e
lastimável, talvez exclusiva aqui desses Brasis) que a pessoa faz de tudo pra
ficar famosa - e muitas vezes esse “tudo” é mesmo impublicável - mas que, no
dia em que alcançam a “fama”, reclamam de volta sua privacidade. Parece uma
grande incongruência. E é. A vida de pessoas famosas, muitos dos quais se
tornam ídolos, é de interesse público, façam o juízo de valor que quiserem
sobre isso. O artista não vive só de sua obra, não é só ela que interessa a uma
grande parcela de seus fãs, seja isso bom ou ruim.
Sem
dúvida, estamos diante de um conflito de valores fundamentais de nosso
ordenamento jurídico: a indispensável liberdade de expressão versus os louváveis direitos à
privacidade e à intimidade das pessoas notórias ou mesmo das anônimas. Ambos são
garantidos e protegidos em nosso estado democrático de direito. Não há, em
nosso ordenamento, direitos que sejam absolutos, o que se revela na questão
exposta. Difícil resolver-se de maneira definitiva, pois cabem ponderações e
defesas dos dois lados. No entanto, me salta aos olhos a prevalência de um
sobre o outro, senão vejamos.
Somos
responsáveis por nossos atos, todos eles, e isso não é só retórica moralista, é
extrato de deveres legais e constitucionais. Seremos responsabilizados por atos
ilícitos, por exemplo, podendo responder civil, criminal e administrativamente.
Se são famosos, respondem inclusive perante a opinião pública, já que sua
imagem também “pertence” ao povo, titular ainda de outro direito, o direito à
informação. Se são biógrafos ou editores, responderão pela publicação ou
divulgação de mentiras, calúnias, difamações etc. Há lei para todos os casos,
protetivas e punitivas.
Para
que se evite a responsabilização, convém um cuidado maior antes de praticar
determinada conduta. Se alguém famoso cometeu algo que o comprometa ou o
responsabilize, deveria ter se precavido antes. Se alguém escreveu algo
inverídico ou abusivo, também responderá. O que não deve haver, sob pena de um retrocesso
inadmissível, é a censura prévia de publicações e escritos. Outrossim, deixar a
cargo do biografado decidir quais fatos de sua vida devem ser retratados,
transforma a biografia em autobiografia ou em trabalho da sua assessoria de imprensa.
Imaginem
se alguém decidir escrever biografias de vultos históricos como o general
Médici ou o ex-presidente Collor, só pra citar alguns, e precisar da
autorização para mencionar o apoio e incentivo à tortura do primeiro ou os
escândalos de corrupção que levaram ao impeachment do segundo. No caso do
general, os censores seriam seus herdeiros, que, na idéia de membros do
movimento “procure saber”, deveriam receber ainda um jabá pelas publicações.
Incrível... Será que na biografia da Xuxa deverá ser omitido que ela fez um
filme erótico? Se ela for perguntada, certamente proibirá. “mantenhamos nossos
ídolos imaculados.” Soa ridículo, até por que, não são.
Em
democracias mais evoluídas que a dessas paragens, não existe essa malfadada
censura prévia. Famosos são famosos e sua vida é contada para o público, sem
embargos de possíveis (e prováveis) condenações em casos de inverdades ou
abusos. O engajamento dos artistas se dá em outras frentes, mais coletivas e
não apenas em interesse próprio. Já houve época em que isso acontecia por aqui.
Falar
mal do Chico Buarque, um dos meus grandes ídolos, é muito difícil pra mim, mas
ele foi um dos que mais pisou na bola nesse assunto. A uma por defender a
censura prévia e o jabá de herdeiros. A duas, mais lamentável, afirmou nunca
ter dado entrevista ao biógrafo “proibido” de Roberto Carlos. Foi desmentido
com provas e se desculpou. A memória de Chico deve andar combalida, resultado
de excessos que também cometo e dos quais não me envergonho. No segundo caso ele
ao menos se retratou.
A
preocupação dos famosos a meu ver deve ser com o cumprimento da lei, que
garante a interrupção de publicações levianas, mentirosas etc, bem como a
responsabilização dos envolvidos. Podem cobrar uma investigação mais meticulosa
e provas mais cabais sobre fatos de suas vidas, uma metodologia de pesquisa
mais confiável, entre outras medidas assecuratórias de seus direitos. Mas isso
de maneira repressiva e nunca preventiva. Se a justiça é lenta ou não pune
devidamente, já mudamos a discussão. Ademais, um erro não pode justificar o
outro.